quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Coitado do desenvolvimento mundial

Claro, claro, não podia ser coisinha simples. Chegar, concentrar e desfilar. Tinha que ter um evento, um drama, algo pra contar por anos a fio. Lógico que eu, o Gabriel e nossos amigos estávamos bem depois da Velha Guarda da Portela, e, antes que nos impedissem de desfilar, deixamos todos pra trás na carreira por ordens de sabe deus que dirigente da escola. A minha impressão era que aquele carro da Velha Guarda não ia sair desde o começo. Eles nem chegaram a montar parte da alegoria... Enfim, Gabriel e Thomas podem contar a história desde o começo. Só digo uma coisa, se o desenvolvimento mundial depender do samba da Portela, como diz a letra (A ONU e o samba parceria ideal, prodesenvolvimento mundial), estamos todos fritos!


BUENA VISTA, MACUMBA E MARATONA - A história do desespero da Portela, vista de perto, by Gabriel

Para os portelenses, o ano de 2005 representaria o fim da maldicao de
trinta anos de azar. O feitico foi lancado em 1974. Uns dizem que foi
uma macumba simples mas eficaz, com galinha morta na encruzilhada.
Outros alegam que uma caveira de burro foi enterrada na quadra da
escola em Madureira. O fato eh que desde entao a Portela, maior e mais
vitoriosa escola do carnaval carioca, nao mais comemorou um titulo
sozinha.

2005, no entanto, seria o ano da redencao. O enredo, homenagem aa ONU,
colocou a Portela nas manchetes dos principais veiculos da imprensa
internacional. No El Pais ela foi saudada como a maior escola do
mundo. A Reuters enfatizou o enredo politicamente correto, sobre a paz
mundial e o combate aa fome. Naomi Campbell veio da Inglaterra para
fazer sua estreia no samba. Paulinho da Viola e Teresa Cristina
participariam do "esquenta" na concentracao. Valeria Valenssa, a
Globeleza, arrasaria como rainha da bateria. Dizer que eramos os
favoritos seria certamente um exagero. Mas todos na escola acreditavam
pelo menos em uma colocacao honrosa, que garantisse a escola no
desfile das campeas no sabado.

Como sempre, desfilamos na ala do Jonas, com suas tradicionais
mordomias. Clube alugado ao lado do sambodromo, com cerveja, vodca e
caipirinha para os folioes. A animacao reinava na noite estrelada, que
contrariava as previsoes de chuva. Todos cantavam o samba. Os que nao
sabiam trechos da letra recorriam ao pianista Julio Wiziack, que
pacientemente solfejava os compassos mais complicados. Nosso grupo --
Claudia, eu, Thomas Traumann, Fernanda, Paulo Roberto Pires, Marta,
Antonia Pellegrino, mais os paulistas Julio Wiziack, Karina Romano e
Thais Salgado -- se preparava para uma noite gloriosa na avenida.

A noite comecou mesmo fantastica, desde a concentracao. Coube aa nossa
ala ficar atras do carro da Velha Guarda. Ficamos todos emocionados ao
olhar de perto mitos como Monarco -- provavelmente o maior sambista
brasileiro vivo, ao lado de Xango da Mangueira --, Casquinha, Tia
Surica, Jair, e varios outros. Para os destinatarios deste e-mail que
nao moram no Brasil, essa turma seria como um Buena Vista Social Club
do samba. Outra emocao foi ver o cartunista Lan, de oitenta anos, se
juntar aos outros. No dia anterior, o grande retratista das mulheres
cariocas desenhara a si proprio no jornal O Globo, vestindo um terno
azul e branco, cores da escola. Neste momento, tivemos certeza.
Iriamos ganhar.

Caminhavamos confiantes em direcao aa passarela do samba quando algo
estranho aconteceu. O carro aa nossa frente -- o do Buena Vista --
parou. Levamos preciosos minutos para saber que havia enguicado. O que
ocorreu naquele momento foi inacreditavel. Fomos chamados a
ultrapassar o carro e correr para alcancar o resto da escola, para que
nao ficassem brancos na avenida. O que se seguiu foi uma verdadeira
maratona. Entramos no sambodromo correndo, e provavelmente batemos o
recorde olimpico de competicao de fundo. Passamos em menos de quinze
minutos. Jah na Apoteose, soubemos que o desfile havia sido uma
tragedia. Varios carros haviam quebrado. A tradicional aguia que abre
o desfile da Portela saiu sem as asas. Mais parecia um papagaio.
Fantasias de componentes se desfaziam, perdiam pedacos na avenida. O
pior de tudo: por uma questao de cronometro, o carro com o Buena Vista
Social Club -- os maiores sambistas vivos do Brasil -- nao pode
entrar. Numa deferencia aos velhinhos com media de idade de 75 anos, a
Liga das Escolas permitiu que eles desfilassem depois da escola.
Foram, obviamente, ovacionados pela plateia.

Restou-nos ir aa Lapa tomar um copo depois de todo o ocorrido.
Encontramos a Taverna do Juca aberta, e brindamos a nos mesmos por
vencer o desafio de preencher o espaco em branco no sambodromo, a
custa de muita corrida. Paulo Roberto Pires, recentemente convertido
aa vida saudavel, cogitava disputar a maratona em Pequim 2008. Na mesa
ao nosso lado, um grupo de integrantes de outra ala da Portela dizia
algo mais inacreditavel ainda. No juri popular da Rede Globo, a
Portela era, ateh entao, a escola com maior media. Nota 9,6, contra
9,4 da Unidos da Tijuca. Vah entender o carnaval carioca...

Na internet, hoje, hah quem diga que a macumba foi mais forte do que o
pretendido e nao sao apenas 30, mas 50 anos de azar. Talvez em 2025 a
Portela volte a vencer um campeonato.


A história by Thomas Traumann -- 09/02/2005
Descobri que alguma coisa estava errada quando a loura atrás de mim começou
a cantar, "olé, olé, carnival, oslo" e disse aos amigos que este tinha sido
o sucesso do carnaval norueguês de uns anos atrás. caramba, em minutos
iríamos entrar no sambódromo e a gringa não sabia o refrão da escola! isso
não podia ser bom agouro. como também não parecia certo aqueles trezentos
pierrôs e colombinas sentados no meio-fio aguardando alguma ordem para se
mover meia hora depois de a escola já ter entrado no sambódromo. éramos uma
mistura de mais de trezentos gringos, atores bêbados, modelos descolados e
jornalistas folgados fantasiados de palhaços na que deveria ser a penúltima
das trinta alas do megadesfile da portela. seria uma noite histórica. a
escola vinha com quase 5 mil componentes no desfile marcado para encerrar os
trinta anos de maldição sem título. estávamos logo atrás do carro da sagrada
velha guarda do samba, com monarco, tia surica, seu jair do cavaquinho e
tantos outros bambas. era tanta gente, que de onde estávamos nem deu para
ver (quanto mais ouvir) o 'esquenta', o momento antes da entrada na sapucaí
em que paulinho da viola e marisa monte animaram os portelenses. o desfile
já passava da primeira hora e, esquecidos na calçada, não tínhamos idéia do
desastre que tomava conta do sambódromo. a essa altura _faltando apenas
vinte minutos para o final oficial - a águia símbolo da escola teve as suas
asas arracandas e um carro havia enguiçado. mas de onde estávamos não se
sabia de nada a não ser a sensação de termos sido esquecidos.
profeticamente, jonas, o organizador da nossa ala, reclamava da
desorganização da portela. ele contava como em 2006 pretendia voltar para a
império serrano quando recebemos a ordem de ultrapassar o carro da velha
guarda. 'corre, corre", berrou um sujeito com o uniforme de diretor. 'tem um
buraco. é pra correr. É PRA CORRER. PORRA! '. e corremos.
peguei fernanda pelo braço e ainda não dava para para entender o que estava
ocorrendo até pisar o sambódromo. não, não era um buraco. tecnicamente, era
não existem buracos de meio quilômetro de extensão. era uma cratera. entre
nós e a ala anterior havia longos quinhentos metros vazios _ como se a
escola houvesse encerrado o desfile antes da nossa entrada. passamos o setor
das arquibancadas populares num rasante. quando olhava para o lado, só se
via gente da escola berrando: "CORRE, PORRA". ninguém nas arquibancabas
cantava o samba. era num pesadelo.
só paramos perto da cabine dos jurados num sprint de dar inveja a pivete.
alcançamos a ala anterior e o bloco dos palhaços, pelo menos, fazia volume.
com o fôlego que restava, berrávamos aquele samba nojento que rimava 'hiv'
com 'aparecer' e dizia coisas idiotas como 'a onu e o samba/ parceria ideal/
para o desenvolvimento normal'. mas ninguém ouvia, ninguém acenava, ninguém
nada. se a gaviões da fiel desfilasse no sambódromo carioca receberia
acolhida mais calororosa. os rostos dos torcedores misturavam surpresa e
desespero. como imaginei, essa era uma noite histórica - a noite em que a
portela faria vergonha. quando chegamos na dispersão, a bateria resgungava
impropérios contra o presidente da escola. daí, começamos a nos dar conta do
naufrágio: os carros quebrados, a águia que desfilou sem asas, o pouco tempo
de treino da bateria... 'vamos cair', ouvi mais de uma vez.só depois do
primeiro chopp na lapa soubemos do drama dos velhinhos. se nós terminamos a
maratona do sambódromo com a língua no queixo, imagine dona surica e seus
100 quilos... bem, o resto do desastre vocês viram na tv. para mim, só resta
me preparar para 2006 e desfilar numa escola de verdade, organizada, que
respeite as suas tradições. já vou treinando, "olé, olé, carnival, oslo"