Julinho no Carnaval
Pessoal,
Divido com vcs algumas impressões (não as melhores, por sorte) sobre nosso
desfile na Portela. Agora, muitas coisas começam a fazer sentido para mim.
E, como vcs são tão queridos, gostaria de compartilhá-las. Perdoem os erros,
escrevi num momento acalorado (digamos). Beijos saudosos a todos.
PALHAÇADA
Na última terça-feira, a de Carnaval, tive um encontro marcado com o samba. Não que seja aficionado pelo ritmo dos tamborins e cavaquinhos. É que, pela primeira vez, desfilaria por uma escola do grupo especial no Rio de Janeiro, a Portela. E lá estava eu, com um grupo de amigos, na hora marcada, pronto para entrar na avenida. O coração começou a bater forte assim que os fogos estouraram avisando de que a escola já invadia a Sapucaí. Para minha surpresa, a ala de arlequins, pierrôs e colombinas – da qual fazíamos parte – encerraria o desfile, atrás do carro alegórico onde estavam as mais ilustres figuras do samba nacional. Pensei: que honra! E como tudo era festa, os foliões de nossa ala se divertiam, cantarolando o samba da “azul e branco”. Demorei a perceber, no meio deles, o ator global Dado Dolabella. Só me dei conta quem era quando ele se dirigiu a mim, depois
de gritar profético e tresloucado que a escola seria campeã. Por uns segundos firmei o olhar em seu rosto, tentando identificar de quem seriam aqueles traços tão familiares por baixo da maquiagem. Talvez tenha me demorado demais, um ultraje para ego tão exigente. Cambaleando (devia ter bebido bastante), ele se afastou, se apoiou em alguns integrantes da turma, e disparou: “sai pra lá que eu não quero ver a mangueira entrar”. Fiquei perplexo, sem reação. Para bom entendedor, a frase falava por si. Apesar de se referir à escola de samba (que tinha desfilado no dia
anterior), ela vinha cheia de conotação sexual e, no caso, homoerótica. Se Dolabella queria ou não ver a “mangueira entrar” e, vale explicar: nele!, óbvio, ninguém precisava ficar sabendo. Mas ele só disse aquilo depois de se dirigir a mim. Portanto, ele se referia à minha mangueira. E, para tal, deve ter acreditado que o encarava porque estava “a fim”. Sendo ou não gay, ele deveria estar cansado de saber que, nem se quisesse, veria a dita cuja entrar. A menos que caprichasse em contorções. Mas esqueçamos esta passagem já, de saída, lamentável. O que me pegou foi o “sai pra lá”. Ainda que seja o Dado Dolabella, cuja delicadeza é a mesma de um elefante transitando numa horta, fui discriminado porque, não sei como, ele me identificou como gay. Sabe-se, que os iguais se reconhecessem, mas este não é o mérito da questão. O fato é que me fez sentir rebaixado por ser gay. Palhaço por fora, me senti palhaço por dentro. E fiquei tristonho, um autêntico Pierrô. Mas a palhaçada não terminou aí. Fazia mais de três horas que esperávamos
para entrar na avenida. O cronômetro, na concentração, computava 50 minutos de desfile. Na nossa frente, o carro continuava estático. Sobre eles, a prata da casa, a velha-guarda, ícone dos 21 títulos carnavalescos conquistados desde 1933. Um deles, Monarco, de tão importante virou enredo de outra agremiação carnavalesca. Mais dez minutos se passaram, e nada. Foi quando, de repente, uns e outros começaram a gritar para que corrêssemos. Quando demos a volta no carro, diretores da escola berravam: “corre, porra!” “corre, porra!” A adrenalina do momento pode ter-me enganado na medição, mas estávamos a uns bons 200 metros da Sapucaí. Lá, os portões já estavam meio fechados. Achei estranho, mas imaginei que ao virar à esquerda para entrar na avenida minha ala estaria compacta, aprontando-se para sambar. Quando virei, havia um clarão de mais de 300 metros entre a gente e a penúltima ala da escola. Era correr ou correr. Imbuídos do espírito carioca, que idolatra as glórias passadas da azul e branco de Madureira, apertamos o passo numa disparada que de samba pouco tinha. Em segundos, o sambódromo virou velódromo. Era como se fôssemos personagens de StarTrek viajando naquela espaçonave que ultrapassa a velocidade da luz. E a nave só brecou quando encontramos a ala à frente, a cinco minutos da praça da Apoteose. Boa parte de nós, que éramos 350 no início, ficou para trás, depois que os portões fecharam-se por completo, minutos após minha passagem. Foram barrados, a velha-guarda e o Dolabella. Contra isso, ambos bateram o pé, cada um à sua moda. Depois de tudo, seria natural que eu chegasse na dispersão sem fôlego e destruído moralmente. A pergunta é: por que permiti tanto desrespeito? Só agora, vendo a gravação do desfile é que entendo este capítulo tão simbólico da minha vida. Assim que a velha-guarda entrou, depois de autorizada pelo presidente da Liga das Escolas, as arquibancadas levantaram-se para aplaudi-los. Já não valia mais nada para a contagem dos pontos. Nós, os palhaços, levamos a Portela até o fim dentro do prazo regulamentar. Mas em momento algum arrancamos palmas do público, que de uma ponta à outra da travessia esteve impávido, gélido, silencioso; como se ali, só houvéssemos nós e a Apoteose. Então, pude perceber quantos estragos tenho feito na minha vida reverenciando o tradicionalismo. Afinal de contas, como aquela gente na
arquibancada eu bato palmas e dou meu sangue, como se diz, ao que parece glorioso, secular, imutável. Um breve resumo: na concentração, sucumbi ao peso da “supremacia heterossexual”, tradicionalíssima em milênios de humanidade, envergonhado por ter sido “descoberto” gay no meio de tantos pelo ator da Globo. E nem consegui esboçar uma reação. Na avenida, extrapolei os limites físicos em nome de glórias passadas que se mostraram insuficientes para arrebatar o título.
Faz 30 anos que a Portela não volta ao topo das campeãs. Tradição não é tudo, não dá conta de cavar no presente – no aqui e agora – um lugar de liderança. E assim a escola vem se perdendo, chegando ao absurdo de terminar em 13º lugar, correndo o risco de ser rebaixada. Agora, quem de fato terminou no chão foi o Dado Dolabella, que levou um soco de um segurança que teve de contê-lo depois de sair do ambulatório (o ator teve um piti porque não conseguiu chegar à Sapucaí a tempo), já quando a Imperatriz Leopoldinense ganhava a avenida. Mas por que voltei a ele, caramba? Ah, já sei. É que enquanto me embriagava com todos esses desastres na mão, num botequim da Lapa, onde fomos afogar as mágoas, alguém cantarolou uma marchinha. Dizia que Pierrô tinha se apaixonado por Colombina, que estava de olho mesmo no Arlequim. Resultado: ela acabou ficando na mão, porque Arlequim fechou a conta com Pierrô. Talvez Dolabella pudesse perceber que na verdade tem muito medo de se sentir atraído por um homem que, vale lembrar, apenas olhou para seu rosto de palhaço. Uma pena que só saquei isso agora,na quarta-feira de cinzas.
Julio Wiziack
Divido com vcs algumas impressões (não as melhores, por sorte) sobre nosso
desfile na Portela. Agora, muitas coisas começam a fazer sentido para mim.
E, como vcs são tão queridos, gostaria de compartilhá-las. Perdoem os erros,
escrevi num momento acalorado (digamos). Beijos saudosos a todos.
PALHAÇADA
Na última terça-feira, a de Carnaval, tive um encontro marcado com o samba. Não que seja aficionado pelo ritmo dos tamborins e cavaquinhos. É que, pela primeira vez, desfilaria por uma escola do grupo especial no Rio de Janeiro, a Portela. E lá estava eu, com um grupo de amigos, na hora marcada, pronto para entrar na avenida. O coração começou a bater forte assim que os fogos estouraram avisando de que a escola já invadia a Sapucaí. Para minha surpresa, a ala de arlequins, pierrôs e colombinas – da qual fazíamos parte – encerraria o desfile, atrás do carro alegórico onde estavam as mais ilustres figuras do samba nacional. Pensei: que honra! E como tudo era festa, os foliões de nossa ala se divertiam, cantarolando o samba da “azul e branco”. Demorei a perceber, no meio deles, o ator global Dado Dolabella. Só me dei conta quem era quando ele se dirigiu a mim, depois
de gritar profético e tresloucado que a escola seria campeã. Por uns segundos firmei o olhar em seu rosto, tentando identificar de quem seriam aqueles traços tão familiares por baixo da maquiagem. Talvez tenha me demorado demais, um ultraje para ego tão exigente. Cambaleando (devia ter bebido bastante), ele se afastou, se apoiou em alguns integrantes da turma, e disparou: “sai pra lá que eu não quero ver a mangueira entrar”. Fiquei perplexo, sem reação. Para bom entendedor, a frase falava por si. Apesar de se referir à escola de samba (que tinha desfilado no dia
anterior), ela vinha cheia de conotação sexual e, no caso, homoerótica. Se Dolabella queria ou não ver a “mangueira entrar” e, vale explicar: nele!, óbvio, ninguém precisava ficar sabendo. Mas ele só disse aquilo depois de se dirigir a mim. Portanto, ele se referia à minha mangueira. E, para tal, deve ter acreditado que o encarava porque estava “a fim”. Sendo ou não gay, ele deveria estar cansado de saber que, nem se quisesse, veria a dita cuja entrar. A menos que caprichasse em contorções. Mas esqueçamos esta passagem já, de saída, lamentável. O que me pegou foi o “sai pra lá”. Ainda que seja o Dado Dolabella, cuja delicadeza é a mesma de um elefante transitando numa horta, fui discriminado porque, não sei como, ele me identificou como gay. Sabe-se, que os iguais se reconhecessem, mas este não é o mérito da questão. O fato é que me fez sentir rebaixado por ser gay. Palhaço por fora, me senti palhaço por dentro. E fiquei tristonho, um autêntico Pierrô. Mas a palhaçada não terminou aí. Fazia mais de três horas que esperávamos
para entrar na avenida. O cronômetro, na concentração, computava 50 minutos de desfile. Na nossa frente, o carro continuava estático. Sobre eles, a prata da casa, a velha-guarda, ícone dos 21 títulos carnavalescos conquistados desde 1933. Um deles, Monarco, de tão importante virou enredo de outra agremiação carnavalesca. Mais dez minutos se passaram, e nada. Foi quando, de repente, uns e outros começaram a gritar para que corrêssemos. Quando demos a volta no carro, diretores da escola berravam: “corre, porra!” “corre, porra!” A adrenalina do momento pode ter-me enganado na medição, mas estávamos a uns bons 200 metros da Sapucaí. Lá, os portões já estavam meio fechados. Achei estranho, mas imaginei que ao virar à esquerda para entrar na avenida minha ala estaria compacta, aprontando-se para sambar. Quando virei, havia um clarão de mais de 300 metros entre a gente e a penúltima ala da escola. Era correr ou correr. Imbuídos do espírito carioca, que idolatra as glórias passadas da azul e branco de Madureira, apertamos o passo numa disparada que de samba pouco tinha. Em segundos, o sambódromo virou velódromo. Era como se fôssemos personagens de StarTrek viajando naquela espaçonave que ultrapassa a velocidade da luz. E a nave só brecou quando encontramos a ala à frente, a cinco minutos da praça da Apoteose. Boa parte de nós, que éramos 350 no início, ficou para trás, depois que os portões fecharam-se por completo, minutos após minha passagem. Foram barrados, a velha-guarda e o Dolabella. Contra isso, ambos bateram o pé, cada um à sua moda. Depois de tudo, seria natural que eu chegasse na dispersão sem fôlego e destruído moralmente. A pergunta é: por que permiti tanto desrespeito? Só agora, vendo a gravação do desfile é que entendo este capítulo tão simbólico da minha vida. Assim que a velha-guarda entrou, depois de autorizada pelo presidente da Liga das Escolas, as arquibancadas levantaram-se para aplaudi-los. Já não valia mais nada para a contagem dos pontos. Nós, os palhaços, levamos a Portela até o fim dentro do prazo regulamentar. Mas em momento algum arrancamos palmas do público, que de uma ponta à outra da travessia esteve impávido, gélido, silencioso; como se ali, só houvéssemos nós e a Apoteose. Então, pude perceber quantos estragos tenho feito na minha vida reverenciando o tradicionalismo. Afinal de contas, como aquela gente na
arquibancada eu bato palmas e dou meu sangue, como se diz, ao que parece glorioso, secular, imutável. Um breve resumo: na concentração, sucumbi ao peso da “supremacia heterossexual”, tradicionalíssima em milênios de humanidade, envergonhado por ter sido “descoberto” gay no meio de tantos pelo ator da Globo. E nem consegui esboçar uma reação. Na avenida, extrapolei os limites físicos em nome de glórias passadas que se mostraram insuficientes para arrebatar o título.
Faz 30 anos que a Portela não volta ao topo das campeãs. Tradição não é tudo, não dá conta de cavar no presente – no aqui e agora – um lugar de liderança. E assim a escola vem se perdendo, chegando ao absurdo de terminar em 13º lugar, correndo o risco de ser rebaixada. Agora, quem de fato terminou no chão foi o Dado Dolabella, que levou um soco de um segurança que teve de contê-lo depois de sair do ambulatório (o ator teve um piti porque não conseguiu chegar à Sapucaí a tempo), já quando a Imperatriz Leopoldinense ganhava a avenida. Mas por que voltei a ele, caramba? Ah, já sei. É que enquanto me embriagava com todos esses desastres na mão, num botequim da Lapa, onde fomos afogar as mágoas, alguém cantarolou uma marchinha. Dizia que Pierrô tinha se apaixonado por Colombina, que estava de olho mesmo no Arlequim. Resultado: ela acabou ficando na mão, porque Arlequim fechou a conta com Pierrô. Talvez Dolabella pudesse perceber que na verdade tem muito medo de se sentir atraído por um homem que, vale lembrar, apenas olhou para seu rosto de palhaço. Uma pena que só saquei isso agora,na quarta-feira de cinzas.
Julio Wiziack
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