terça-feira, fevereiro 21, 2006

Gabriel no NoMínimo

COMO SE FAZ UM CARIOCA,

por Paulo Roberto Pires


21.02.2006 | Dizem as leis imemoriais do Rio de Janeiro que Carnaval
não combina com livro nem com paulista. João Gabriel de Lima, doce
forasteiro que é, não faz a menor cerimônia em quebrar a norma e
desmentir o clichê. Lançou esta semana no Rio – depois de São Paulo,
claro – "Carnaval", uma novela que, de muitas formas, mostra o que
esta cidade, entre tiros na Rocinha, Rolling Stones na areia e samba
no asfalto, pode fazer com um personagem e com um escritor. E nem
adianta dizer que carnaval de paulista é livro.

Jornalista e músico, João Gabriel publicou em 2000 "O burlador de
Sevilha", romance que, também lançado em Portugal, o levou à final do
Prêmio José Saramago para jovens talentos. Naquele livro, delicioso, a
ópera era uma referência constante. Neste, é o samba e o cinema que
fazem contraponto para a história de Pedro Aranha, cinéfilo
empedernido, dono de uma locadora de DVDs, homem casado que se
apaixona por uma chef carioca (radicada em São Paulo) e combina
desfilar com ela no Império Serrano de 2004, que reeditou o fantástico
samba "Aquarela brasileira".

Mas se você quer ler uma resenha do livro, pode procurar em outro
lugar. Aqui, não. Primeiro porque, muito honradamente, faço três
aparições no livro, como personagem não-nomeado mas reconhecível por
pouca (espero) gente – e onde já se viu personagem escrever resenha?
Segundo porque este livro é produto de um processo que não é puramente
literário e também raro de se presenciar, o da construção de um
carioca.

Há dois anos João decidiu, espontaneamente, trocar São Paulo pelo Rio.
Deixou boa parte dos (muitos) livros por lá, botou o piano num
caminhão de mudanças, e com suas três gatas –Agatha, Zerlina e Claudia
– veio parar em Ipanema. Ao contrário dos cariocas de almanaque, que
costumam ter nascido por aqui e querem ser mais realistas do que o
rei, nosso personagem não trazia debaixo do braço bulas e guias do
cariocamente correto. Não lhe faltava, no entanto, disponibilidade
para o que desse e viesse.

Vamos fazer um teste, carioca. Veja o que o João Gabriel já fez por
aqui e veja se você consegue acompanhar:

1 – Joga vôlei em Ipanema antes do trabalho, mantendo-se em permanente
bronzeado – como diria Nelson Rodrigues, quase um havaiano da vida
real.

2 – Já concorreu a dois sambas para o Imprensa que eu Gamo – o que não
tem nada demais, já que é um bloco de jornalistas. O que tem demais é
que, ao compor o primeiro, acabou conhecendo e ficando amigo de
ninguém menos que Xangô da Mangueira, a quem chama cerimoniosamente de
"seu Xangô".

3 – Destemido, concorreu, com parceiros, ao samba-enredo da Mangueira.
Isso mesmo. Gravou o samba em esquema profissional, com músicos e
intérprete contratado. Perderam, é claro, mas a coragem é o que conta.

4 – Emenda uma ida à Portela tocando Bach no piano como se isso fosse
a coisa mais normal do mundo – e é mesmo.

5 – Já desencaminhou pelo menos um turco e dois portugueses para o samba.

6 – É bem tratado no Bar Lagoa.

Isso tudo sem teorizar, sem encher o saco com "o melhor chope", sem
buscar o samba "puro". Ou seja, assimilando de verdade o espírito de
uma cidade cada vez mais azucrinada por chatos de todas as extrações.

No fim de semana passada, um grupo de amigos convocou um churrasco
como concentração do Simpatia É Quase Amor, personagem importante de
"Carnaval", e concedeu-lhe, por conta própria, a Medalha Pedro
Ernesto, comenda máxima pelos serviços prestados à cidade. É que os
vereadores, que deveriam prestar-lhe esta homenagem, deviam estar
ocupados trabalhando. Que nem paulistas.